Realidade foi ocupada pela primeira vez há 40 anos, quando o governo brasileiro — em uma ditadura militar — estabeleceu uma política de distribuição de terras altamente favorável aos estrangeiros, enquanto também pesquisava e construía a BR-319 original, uma estrada de 890 quilômetros que liga a cidade de Manaus, no estado do Amazonas, a Porto Velho e o resto do Brasil.

Mapa de Gustavo Faleiros/InfoAmazonia. Fonte: MapBox, RAISG (estradas, áreas protegidas e terras indígenas), Mudança Global Florestal — UMD (Desmatamento 2000-2016), INCRA (assentamentos agrários).

No entanto, a brutal estação chuvosa anual da Amazônia logo transformou o caminho em lama e atoleiro, restringindo os negócios durante parte do ano, o que desencorajou qualquer grande fluxo de empreendedores do Sul e de outras regiões.

Só recentemente, em 2010, quando o governo federal retomou o investimento na melhoria da rodovia, mais pessoas começaram a chegar. Hoje, Realidade é o lar de cerca de 7.000 moradores. E a vila já se espalhou para além das terras doadas pelo governo federal nos anos 70, avançando pelo terreno do outro lado da BR-319. Esse crescimento veio com a derrubada da floresta, o desmatamento do qual a serraria de Balbinotti e as usinas pertencentes a outras se beneficiaram.

“As coisas aqui estão ficando cada vez melhores”, comentou Balbinotti. Sua empresa processa cerca de 1.000 metros cúbicos de madeira serrada por ano, quantidade que ocuparia pelo menos 50 caminhões. Este ano foi a primeira vez, desde que chegou, que conseguiu transportar seus produtos durante a estação chuvosa.

A serraria de Balbinotti é apenas uma das oito instaladas em Realidade, embora apenas quatro estejam em operação em tempo integral. Com as melhorias iminentes da BR-319, já estendendo a temporada de exportação de madeira, juntamente com as serrarias, que é a principal atividade econômica da vila, Realidade está aumentando a taxa de desmatamento na parte sul do estado, além de ajudar a aumentar o número de estradas não oficiais.

Na última década, a quantidade de estradas madeireiras na área de Realidade aumentou de forma constante em uma média de 17 quilômetros por ano. Em 2017, havia um total de 305 quilômetros de caminhos dirigíveis pela floresta. Essas estradas de terra não oficiais trazem mais desmatamento, degradação e fragmentação. Entre 2000 e 2016, o desmatamento aumentou em 62% dentro de uma área de estudo da ONG ambiental IDESAM, que abrangeu 1.100 quilômetros quadrados em ambos os lados da BR-319.

Hugo Loss, chefe técnico e ambiental do IBAMA, que coordena as inspeções florestais no estado, disse que as ações de combate ao desmatamento ilegal no sul do Amazonas são frequentes. O principal foco de repressão às atividades ilegais ainda se concentra nas cidades, bairros e aldeias ao longo da rodovia Transamazônica, que atravessa a BR-319. Mas ele reconhece que também há pressão de desmatamento na área de Realidade. E as inspeções já foram intensificadas. “Há um aquecimento dessa economia, com a abertura de novas serrarias e migração de pessoas”, explicou.

A história de Realidade é também a história de outros municípios pequenos, mas em expansão, ao longo da BR-319, BR-230 e da rodovia Transamazônica em lugares como Apuí, Cento e Oitenta e Boca do Acre, onde o padrão espinha de peixe de fragmentação florestal, como visto do ar, agora está sendo replicado.

Também representa um cenário cronológico de desmatamento da Amazônia bem conhecido por conservacionistas, cientistas e povos indígenas e tradicionais em toda a região, do vale do rio Xingu até a bacia do Tapajós: primeiro, vem o asfalto concedendo acesso imediato à floresta tropical, depois, vem o desmatamento, gado, plantações, mais imigração e mais exploração.

De fato, uma BR-319 melhorada está pronta para impactar seriamente não apenas um vale fluvial, mas dois. A estrada está localizada na divisa entre as bacias dos rios Purus e Madeira. Essa vasta área, conhecida como interflúvio (um pouco mais elevada entre duas bacias hidrográficas), corre aproximadamente de norte a sul por muitos quilômetros e é reconhecida pelos conservacionistas como um importante habitat para espécies endêmicas. A floresta úmida encontrada em ambos os lados da rodovia ainda é pouco estudada, mas expedições recentes confirmaram a existência de novas espécies de pássaros e anfíbios. A Rede WWF chama a região de “notavelmente intacta”.

No entanto, a pavimentação da BR-319 e os primeiros, porém agravantes, assaltos à ecorregião da floresta úmida de Purus-Madeira, poderiam ter muito mais do que impactos locais se deixados descontrolados.

Os cientistas alertaram, no início deste ano, que a Amazônia está se aproximando de um ponto crítico, além do qual, o aumento do desmatamento, combinado com a crescente mudança climática, poderia provocar mudanças regionais em direção a um paradigma climático mais quente e seco, com muito menos chuva e seca profunda, causando a conversão de grande parte da Amazônia de floresta tropical (com alta capacidade de armazenamento de carbono) em savana (com menor capacidade de armazenamento de carbono).

Essa transformação do clima e do bioma, caso ocorra, afetaria não apenas a vila de Realidade e o Brasil, mas também a América do Sul e o resto do mundo.

Matéria publicada por Maria Salazar
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