A ascensão de Campos Lindos

No final da década de 1990, pouco depois da criação do estado do Tocantins, o prefeito local Siqueira Campos – que deu nome à cidade –começou a dividir a terra em lotes sem título, vendendo-os para endinheirados aspirantes a empresários do agronegócio, muitos dos quais eram seus amigos do sul do Brasil. As terras foram vendidas sem o conhecimento das famílias que já residiam no local e sem o reconhecimento de suas alegações de várias décadas de ocupação dos lotes utilizados para agricultura e pecuária de subsistência.

Assim teve início o que hoje é chamado de projeto Campos Lindos.

A documentação que legitima esses novos proprietários de terras atesta que eles plantariam árvores frutíferas. Trinta anos depois, não há uma única árvore frutífera à vista, somente soja e milho até onde a vista alcança.

Imagem de satélite do Landsat mostrando a transformação na agricultura entre 1984 e 2016. Crédito: Willie Shubert para a Mongabay

Os eventos que ocorreram em Campos Lindos vêm se repetindo no Cerrado brasileiro nas últimas décadas. As mudanças no uso da terra se tornaram possíveis cerca de 30 anos atrás, quando a savana semiárida – há muito considerada uma terra estéril, improdutiva e sem valor – foi reavaliada por elites rurais que perceberam que novas tecnologias a transformavam em uma terra cultivável e valiosa. Com essa descoberta, os empreendedores não tardaram em chegar – primeiro ao estado do Mato Grosso, que tem boa parte de seu território ocupada pelo bioma Amazônia e, em seguida, à mais recente fronteira agrícola: o bioma Cerrado. Uma região particularmente atraente naquela área era a região conhecida hoje como Matopiba, um nome criado pelo agronegócio juntando as primeiras letras dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, onde hoje a soja reina.

Os povos tradicionais reagem

Os pequenos produtores tradicionais não aceitaram passivamente o que consideraram roubo de terras. Após décadas de campanhas locais, apoiadas pela ONG Comissão Pastoral da Terra (CPT), alguns dos que residiam nas terras que estavam sendo ocupadas pelo projeto Campos Lindos receberam títulos do governo, perfazendo um total de 70 concessões.

No entanto, muitos outros ficaram de fora. Em alguns casos, o governo considerava pais e filhos uma única unidade familiar que recebia apenas um título, quando na verdade cada um possuía e cultivava lotes separados.

No ano de 2004, a Associação Planalto, organização que representava todos os proprietários de terras abastados de Campos Lindos, instaurou uma ação judicial inicialmente acusando 6 e posteriormente 42 famílias de camponeses pobres, alegando invasão de território e roubo de terras.

Ao longo do processo judicial de uma década, várias famílias desistiram e se mudaram para a periferia da cidade, onde hoje, desprovidas de seus meios de subsistência, lutam para sobreviver em bairros empobrecidos e dominados pelo crime.

Este caso representa bem os conflitos por terra que agora assolam Matopiba, onde o nível de violência aumenta continuamente: 70 pessoas foram assassinadas em ataques ligados à disputa de terra em 2017, em comparação com 61 em 2016 e 29 em 2011, segundo dados coletados pela CPT.

Conflitos em torno das “reservas legais”

Os povos tradicionais afirmam que os grandes latifundiários conseguiram inclusive manipular as leis ambientais a seu favor. Segundo o novo Código Florestal de 2012, qualquer pessoa que resida em determinadas áreas do Cerrado precisa manter 20 a 35% da sua propriedade em estado natural em caráter permanente como “reserva legal”. Os produtores em grande escala que não conseguem cumprir essa meta apropriam-se cada vez mais das terras naturais remanescentes do Cerrado e as utilizam como a reserva legal de suas enormes plantações de soja.

Acontece que, muitas vezes, essas terras naturais remanescentes são ocupadas sem título por comunidades tradicionais que as utilizam de forma cooperativa para agricultura, pecuária e edificações em pequena escala. A classificação como reserva legal restringe automaticamente tais atividades; assim, mais uma vez, os povos tradicionais são privados de seus meios de subsistência, pressionados a deixar as zonas rurais e forçados a emigrar para a área urbana em Campos Lindos.

No caso da ação judicial da Associação Planalto, as terras onde residem os pequenos produtores remanescentes foram declaradas reserva legal da associação: uma vitória de Pirro que permite que os povos tradicionais permaneçam na terra mesmo sem título, mas os impede de cultivá-la ou de ganhar dinheiro com ela. Os ativistas apelidaram o golpe da reserva legal de “grilagem verde”.

Um povo marginalizado

“Estou inseguro; não posso dizer que ficarei aqui pelo resto da vida”, diz João Ramos dos Reis, presidente do sindicato dos trabalhadores rurais tradicionais. “Eu gostaria de poder dizer que essas terras ficarão para os meus netos.”

Além da insegurança que sente quanto às suas terras, João Ramos também perdeu seu meio de vida tradicional. A maior parte da área onde criava gado foi ocupada por plantações de soja. “Quase chorei quando fui lá pela última vez”, disse ele.

João Ramos dos Reis no quintal da sua casa no meio da floresta. Ele cultiva a terra onde outrora criava gado, embora sua vida e seu trabalho estejam sendo usurpados aos poucos pelas monoculturas de soja e milho. Foto: Thomas Bauer.

Seus pais moravam em uma planície aluvial, mas venderam as terras a um latifundiário por um preço baixo e se mudaram para Campos Lindos, pois sua pequena criação de gado havia se tornado insustentável. Na estação úmida, os agrotóxicos presentes no escoamento da produção agrícola poluíam o riacho que abastecia suas terras, fazendo com que suas vacas abortassem.

João Ramos resiste, plantando legumes e pulses (sementes secas de feijão, ervilha e lentilha).

“Você não pode esperar que uma pessoa analfabeta e caipira como eu viva bem na cidade grande”, diz João. “Eu provavelmente começaria a roubar comida no supermercado.”

Muitos outros habitantes tradicionais, incluindo o Sr. Raimundo de Miranda, desistiram de lutar por suas terras e agora moram na periferia de Campos Lindos, junto à população urbana mais desfavorecida.

O mito da redistribuição

Muitos produtores de soja e membros das classes políticas estadual e federal defendem a rápida conversão de comunidades rurais tradicionais – que praticam agricultura e pecuária de subsistência – em enormes plantações de soja como sendo uma forma de economia de redistribuição. Segundo eles, esse processo gera riqueza, melhoria da infraestrutura e empregos.

Campos Lindos, uma cidade rodeada de plantações de soja, representa um enorme contraponto a essas alegações. Nesse cenário dominado pela soja, a riqueza está fortemente concentrada nos “ninhos de gaúcho” – mansões situadas no coração das plantações e protegidas por um grande escudo de árvores. Os proprietários são os magnatas da soja, quase todos oriundos do sul do Brasil.

Nas demais áreas, reina a pobreza. Segundo o índice de progresso social, ferramenta de análise econômica desenvolvida pelo Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), o índice de prosperidade de Campos Lindos é de 50,54, 10 pontos abaixo da média do estado de Tocantins e 17 pontos abaixo da média nacional.

Os resultados apresentados pela ferramenta mostram uma pontuação especialmente baixa para esse município quanto ao item “necessidades humanas básicas”, como água limpa e saneamento básico, condições de vida e acesso à educação. Ela também aponta níveis elevados de mortalidade materna no parto e elevada mortalidade infantil.

A Amazônia Legal, uma divisão sociogeográfica que inclui todo o bioma Amazônia e partes do Cerrado, contém 72 municípios, dos quais apenas 13 alcançam a média nacional em termos de desenvolvimento social, apesar dos enormes investimentos em mineração, agropecuária e cultivo de soja em toda a região. Embora o Brasil ocupe o 43º lugar no Índice de Progresso Social a Amazônia Legal, se considerada isoladamente, ocuparia o 94º.

“Há municípios que estão indo razoavelmente bem, em parte devido à expansão agrícola, mas ainda estão extremamente defasados em relação ao restante do país”, diz Beto Veríssimo, pesquisador sênior do Imazon. “A expansão da soja gera muita riqueza, mas somente para 1% da população.”

O Sr. Raimundo de Miranda faz parte dos 99% que não têm acesso a essa riqueza. Na década de 1990, ele teve uma pequena participação no desflorestamento do Cerrado quando trabalhou para um produtor de soja em grande escala, derrubando árvores e removendo raízes para abrir espaço para a criação de gado, que nivela e prepara o solo para a conversão para a soja. O trabalho era exaustivo, informal e extremamente mal remunerado.

Além disso, também era temporário. Depois que a terra foi desflorestada e ocupada pela soja, o trabalho do Sr. Raimundo não era mais necessário e nunca o chamaram de volta.

“Não querem pessoas como eu no trabalho diário de uma fazenda de soja”, diz ele. “Precisam de funcionários especializados que saibam operar máquinas. Os trabalhadores locais não têm como trabalhar nessas fazendas.”

O futuro não é muito promissor para quem busca emprego no agronegócio. Segundo o IBGE, o Brasil dispõe atualmente de 15 milhões de trabalhadores agrícolas. No entanto, são 9,2% menos trabalhadores em comparação com o ano de 2006, o que representa uma perda de 1,5 milhão de empregos, em sua maioria rurais, em pouco mais de 10 anos. O principal motivo dessa perda é a mecanização das plantações – o número de tratores registrados em propriedades rurais aumentou em 49,7% no mesmo período.

Vários proprietários de terras na região do Matopiba contratam trabalhadores de outras áreas para operar o maquinário complexo, muitas vezes de seus próprios estados do sul, o que deixa a população tradicional local sem perspectivas de conseguir emprego em longo prazo e sem a possibilidade de viver de maneira sustentável nas terras que outrora foram suas.

Colonizando o Cerrado

José Antonio Gorgen, conhecido como Zezão, é um dos mais famosos produtores de soja do Matopiba, com enormes fazendas espalhadas pelo Maranhão e Piauí. Ele endossa a opinião de muitos donos de terras e agricultores quando afirma que o influxo de sulistas para o Matopiba, incluindo ele próprio, representou um avanço extremamente positivo para a população local.

“Se não tivéssemos vindo do sul, estas terras estariam vazias hoje”, disse ele à Mongabay. Zezão afirma que há somente um produtor de soja em grande escala em todo o Maranhão que é originário do estado, enquanto no Piauí não há nenhum produtor de soja nativo.

Segundo Zezão, as técnicas de cultivo de subsistência praticadas por comunidades tradicionais e indígenas são primitivas, improdutivas e atrasadas. Assim, para melhorar de vida, a única esperança dessas pessoas é mudar para a cidade e entrar no mercado de trabalho.

“Vou contar o que um dos meus funcionários me falou outro dia”, disse ele. “Trabalhando para você, com três meses de salário consigo comprar todo o feijão e arroz que meu pai e meus irmãos produzem. Onde há soja, há mais riqueza, casas bonitas, carros novos, supermercados!”

Enemésio Ângelo Lazzaris, bispo do Maranhão e defensor dos direitos dos povos nativos, não enxerga o “progresso” dessa forma: “Muitas pessoas que moravam na zona rural tiveram que se mudar para a periferia das cidades, o que provocou a desintegração das comunidades [rurais]”, disse ele. “Todos os anos as terras se concentram cada vez mais nas mãos de poucos e os povos [indígenas e tradicionais] estão perdendo gradativamente as terras de que precisam para sustentar suas famílias.”

Enemésio Angelo Lazzaris, bispo do Maranhão. Dom Enemésio Lazzaris critica abertamente o agronegócio na região e não é bem-visto entre os produtores de soja. Foto: Thomas Bauer.

Tasso Fragoso é um exemplo interessante dessa questão. Trata-se de uma das maiores cidades produtoras de soja no Matopiba, com plantações de soja ocupando mais de 1.560 quilômetros quadrados. O PIB per capita de Tasso Fragoso é o maior do Maranhão e o 60º maior do Brasil (em um total de 5.560 municípios). Contudo, os índices de desenvolvimento humano do município são comparativamente muito baixos, com água e saneamento básico de baixa qualidade, acesso limitado à energia elétrica e níveis elevados de vulnerabilidade social..

Analistas apontam verdades inconvenientes por trás das estatísticas do PIB: os agricultores de subsistência e as comunidades tradicionais não contribuem muito para o PIB, pois seus sistemas de produção e consumo são locais e não fazem parte do mercado econômico mais amplo. Porém, assim que suas terras são cooptadas por um produtor de soja em grande escala, são inseridas imediatamente nos mercados regional, nacional e internacional. Desse modo, o PIB de uma região pode disparar absurdamente enquanto a riqueza material da maioria dos habitantes despenca, concentrando terras e dinheiro nas mãos de poucos.

“Ainda que correndo o risco de parecer um herege para o agronegócio, eu pergunto: você acha que valeu a pena trazer todos esses sulistas para cá?”, questiona Dom Enemésio Lazzaris. “Não teria sido melhor deixar estas terras nas mãos dos maranhenses?”

Responsabilidade mundial

É fácil usar o agronegócio industrial como bode expiatório para os vários problemas sociais do Cerrado, mas analistas afirmam que os empresários brasileiros estão apenas atendendo às demandas do mercado global. Os consumidores que compram frango de alguns dos maiores e mais conhecidos supermercados e cadeias de fast-food da Grã-Bretanha estão ajudando a promover a desigualdade social a meio mundo de distância.

Na margem das plantações de soja, entre a casa do Sr. Raimundo de Miranda na cidade e seu antigo lote de terra no interior, estão enormes processadoras de soja pertencentes à Cargill e à Bunge, duas comerciantes transnacionais de commodities. Essas e outras empresas, incluindo a Archer Daniels Midland (ADM) e a brasileira Amaggi, compram soja de grandes latifundiários e a exportam para o mundo inteiro, principalmente para a União Europeia e a China.

No Reino Unido, a McDonald’s, a Tesco e a Morrisons compram frango da Cargill, a maior empresa privada dos EUA que tem forte presença no Cerrado. Segundo dados coletados pelo site Trase.earth, o Reino Unido também é o quinto maior importador da soja da Cargill (cultivada no Cerrado) depois da China, Tailândia, Países Baixos e França.


Segundo dados apresentados no site Trase.earth, a soja produzida em Campos Lindos de 2010 a 2015 foi vendida para 15 países diferentes. Gráfico de Willie Shubert para a Mongabay

Embora os consumidores geralmente associem a soja a substitutos para o leite e a carne, na Grã-Bretanha a maior parte da soja é usada na alimentação animal e compõe 20 a 25% da alimentação dos rebanhos de frangos. Segundo o Instituto Ambiental de Estocolmo, a Grã-Bretanha importou 394 mil toneladas de soja do Brasil em 2015, sendo que três quartos desse montante vieram da Cargill.

Enquanto o desflorestamento avança, países ao redor do mundo esgotam seus recursos limitados e o planeta aquece gradativamente, é difícil não imaginar se teríamos algo a aprender com agricultores de subsistência de pequena escala como o Sr. Raimundo de Miranda. O medo é que não tardará até que eles sejam todos subjugados por um mercado globalizado que prioriza o aumento da produção e o crescimento econômico acima de tudo.

A colaboradora da Mongabay Anna Sophie Gross foi acompanhada em sua viagem pelo fotógrafo e cineasta Thomas Bauer, que documenta e apoia comunidades no Cerrado e na Amazônia há mais de 20 anos. Ele produziu quase todas as fotos e vídeos para esta série.

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No centro de algumas monoculturas de soja há um cemitério pertencente a uma das comunidades locais, expulsa de suas terras pelo projeto Campos Lindos. Zé Batata, um agricultor de subsistência que mora em Campos Lindos, posa para a foto ao lado da sepultura de sua mãe, totalmente coberta por pés de milho. Foto: Thomas Bauer..
Matéria publicada por Maria Salazar
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