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Multas de 29 milhões de dólares por desmatamento: uma reviravolta no comércio brasileiro de soja?

  • A Operação Shoyo foi lançada pelo IBAMA e arrecadou 29 milhões de dólares (cerca de 105 milhões de reais) em multas de fazendeiros e negociantes internacionais de soja por desmatamento ilegal no Cerrado.

  • Cinco empresas multinacionais que comercializam o commodity – Cargill, Bunge, ABC Indústria e Comércio, JJ Samar Agronegócios e Uniggel Proteção de Plantas – foram multadas em mais de 24,6 milhões de reais por comprarem soja cultivada em terras que não tinham licença para desmatar.

  • As demais multas foram aplicadas em fazendeiros individuais. A falta de conformidade com as políticas ambientais foi encontrada em 77 propriedades no Cerrado, com auxílio de dados geoespaciais coletados por monitoramento via satélite.

  • As multas foram aplicadas em um momento inoportuno para o IBAMA, em que os negociantes de commodities e a população estavam distraídos com a greve dos caminhoneiros brasileiros. No entanto, alguns especialistas afirmam que as multas são um alerta, e até mesmo uma reviravolta na indústria. Já outros, afirmam que o desmatamento está enraizado no modelo de produção de soja e que as multas terão pouco impacto em longo prazo.

A soja representa mais de 12% das exportações brasileiras, que arrecadou 25,7 bilhões de dólares em 2017, o que a torna um motor importante na economia do país. A alta margem de lucro que ela proporciona também atrai os fazendeiros a desrespeitar as leis que regulam o desmatamento, e as grandes empresas a fazerem vista grossa quanto a seus fornecedores de sementes. Foto: Flávia Milhorance.

A Operação Shoyo emitiu um sinal de alerta para a indústria brasileira de soja. No final de maio, cinco empresas multinacionais de comércio de grãos, e mais dezenas de seus fornecedores foram multadas num total de 105,7 milhões de reais pelo IBAMA. O órgão espera que essas sanções chamem a atenção para o desmatamento ilegal que ocorre no país, e torne o setor mais responsável por seus erros ao embargar plantações em áreas proibidas.

A operação, parceria do IBAMA com o Ministério Público Federal, inspecionou o comércio de soja nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia que, juntos, formam a região conhecida como Matopiba – a mais nova área agrícola do país, localizada no Cerrado. Atualmente, 11% da produção de sementes de soja acontecem na Matopiba, e mais da metade de seus 337 municípios produziram soja na última década.

O Cerrado é rico em biodiversidade, mas sua parte ao norte está sendo rapidamente transformada pela agricultura, e estima-se que a indústria de soja cresça ainda mais nesta região nos próximos anos. O desmatamento no Cerrado está avançando mais rápido nos estados da Matopiba do que em qualquer outra parte do bioma. “Se não houver alguma atitude por parte do Estado para inibir essa prática e impedir a chegada desses bens ao mercado, o desmatamento vai aumentar”, afirma Renê Luiz de Oliveira, chefe do apoio ambiental no IBAMA, em declaração.

Quando o IBAMA começou a notar infrações ao embargo, deu início à investigação que busca saber como a soja transita na cadeia produtiva, bem como aprender qual o comportamento das atividades ilegais, acrescenta Renê. As novas multas surgem em meio a uma tensão crescente entre os setores conservacionistas e do agronegócio.

Na linha de frente da expansão do comércio de soja está a região de Matopiba, onde 11% do total da produção brasileira da semente acontece. A Matopiba é a parte ao norte do Cerrado, região onde o IBAMA concentrou sua investigação. Foto: Flávia Milhorance.

“Impossível que eles não soubessem”

As cinco empresas multinacionais de commodities – Cargil, Bunge, ABC Indústria e Comércio, JJ Samar Agronegócios e Uniggel Proteção de Plantas – foram multadas em mais de 24,6 milhões de reais por adquirirem cerca de 49 mil sacas, de 60 quilos cada, com soja cultivada em área embargada pelo IBAMA.

Essas áreas embargadas pelo IBAMA são áreas onde fazendeiros desmataram a vegetação nativa, que deveria ser preservada para se regenerar, sem autorização. “No entanto, às vezes os fazendeiros pensam que não serão inspecionados e continuam a cultivar na região” explica Tiago Reis, doutorando na Universidade Católica de Louvain, que estuda as cadeias de suprimento da agricultura. A falta de conformidade às políticas ambientais foi encontrada em 77 propriedades, segundo dados geoespaciais.

A investigação do IBAMA descobriu que as empresas tinham acordos de compra com os fazendeiros antes mesmo que a colheita acontecesse, uma prática comum no mercado de commodities. “Isso significa que os negociantes certamente fizeram avaliações de risco financeiro. Impossível que eles não soubessem que a soja era de áreas embargadas – isso é informação pública”, declara Tiago à Mongabay.

“Ou então, se eles não sabiam, não deram muita atenção”, afirma Mairon G. Bastos Lima, pesquisador da Universidade Técnica Chalmers, que trabalha com a TRASE, uma plataforma que monitora cadeias de suprimento globais.

A rápida expansão da indústria da soja na região da Matopiba acontece aos custos da vegetação nativa do Cerrado, uma savana vasta e com grande biodiversidade. Foto: Alicia Prager.

Cada vez mais atenção é dada ao “Velho Oeste” brasileiro

Ainda que multas no valor de 6,5 milhões de dólares, divididas entre cinco multinacionais do ramo de commodities, não façam muita diferença no orçamento dessas empresas, as penalidades mandam uma forte mensagem para o setor: “Mostra que os órgãos reguladores estão atentos. Atualmente, os atores que trabalham no solo agem como se ninguém estivesse olhando”, explica Tiago.

O valor das multas é o aspecto menos importante nesse caso, ele acrescenta. O que conta é que a reputação dessas empresas entra em risco.

A operação do IBAMA aconteceu dentro de um contexto de aumento de atenção voltada à região da Matopiba, o “Velho Oeste” brasileiro, segundo Mairon. “As multas precisam ser intensificadas para que o sistema todo funcione”, afirma.

A investigação pegou a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), representante dos fazendeiros, de surpresa. A Confederação sabe que fotos via satélite são tiradas mensalmente, portanto, as violações poderiam ser identificadas imediatamente, e as sanções não precisariam ser aplicadas em uma só tacada no mês de maio. A CNA argumenta que a conservação deveria ser responsabilidade de toda a sociedade, e não jogada nas costas de alguns fazendeiros.

“É um desequilíbrio. Todo mundo sabe que a preservação é importante, mas a sociedade tem que assumir o seu papel, e não apenas os fazendeiros”, afirma Rodrigo Justus, consultor ambiental da CNA.

Conservacionistas, no entanto, afirmam que boa parte da vegetação nativa do Brasil, fora da Amazônia, encontra-se em propriedade privada, o que torna a preservação e sua regularização um desafio.

“É necessário, então, que os agentes do agronegócio contribuam para a conservação do ecossistema, ao menos de acordo com o que é exigido pela lei”, afirma Mairon. O essencial para garantir que isso aconteça é o desenvolvimento de cadeias de suprimento sustentáveis para a conservação do Cerrado. Todos os envolvidos na cadeia de produção, no marketing e nas negociações devem ser responsabilizados, concordam os ambientalistas. Para o IBAMA, isso significa um controle mais eficiente do mercado, afirma Renê Luiz de Oliveira, chefe do apoio ambiental no instituto.

Em 23 de maio, o IBAMA multou em 29 milhões de dólares cinco grandes empresas de commodities e mais dezenas de fazendeiros que não respeitaram os embargos aplicados a áreas desmatadas ilegalmente. Foto: Alicia Prager.

Penalidades sem precedentes

Infelizmente, para o IBAMA, a aplicação das multas aconteceu em um momento ruim, quando uma greve nacional dos caminhoneiros parou o país, um evento que levou preocupação às empresas de commodities e que chamou a atenção do público bem mais do que as multas aplicadas aos comerciantes de soja.

“As multas não receberam a atenção que poderiam receber, caso a situação fosse outra”, afirma Tiago Reis. Ao mesmo tempo, ele acrescenta, a indústria de soja tem procurado ser mais responsável e atenta para não violar as leis ambientais, se comparada a outros setores da agricultura. Enquanto as multas aos produtores de soja são uma novidade, elas são aplicadas regularmente ao setor pecuário, por exemplo.

No total, todas as fases da Operação Shoyo resultaram na apreensão de 84.024 sacas de soja – 5.041 toneladas no total, segundo o IBAMA. Além das multas, o Ministério Público Federal anunciou que entrará com uma ação civil pública contra alguns transgressores e irá pedir que eles reparem todos os danos ambientais que causaram com sua atividade ilegal.

Ao ser questionada, a Bunge respondeu que contesta as alegações e que emitiu uma resposta ao IBAMA questionando as descobertas. “Queremos utilizar todos os canais disponíveis para esclarecer essa questão”, afirma a declaração. A mesma coisa aconteceu com a Algar Agro (o novo nome da ABC Indústria e Comércio SA). A empresa informa que já apresentou sua defesa, e provou que segue as melhores práticas na compra de grãos. A Cargill respondeu os questionamentos e reafirmou que a empresa tem processos e controles internos para evitar a compra de áreas embargadas. Afirmou, ainda, que os fatos relatados estão sob revisão e que medidas apropriadas serão tomadas para lidar com a situação.

Preocupada com as possíveis implicações a sua reputação, a Uniggel Sementes respondeu que a Uniggel Proteção de Plantas – multada em mais de 13 milhões de reais pela compra de 26.510 sacas de sementes de soja no Tocantins – não tem relação com a marca Uniggel, apesar de levar Uniggel em seu nome.

Enquanto alguns especialistas encaram as multas como uma ferramenta de conservação valiosa, eles estão cientes de que a expansão agrícola atual do Brasil tem implicações de longo prazo no cenário ambiental. “Empresas falam sobre produção responsável de soja, mas o modelo atual de agricultura industrial é baseado no desmatamento e em conflitos por terra”, afirma Devlin Kuyek da ong GRAIN. O aumento da produção de soja traz consigo, inevitavelmente, muitos problemas para as comunidades locais, incluindo o desmatamento e uma diminuição das fontes de água. “É um modelo muito insustentável, parte de uma enorme cadeia de suprimentos global”, afirma Devlin.

“A região da Matopiba tem o apelido de ‘Velho Oeste’ brasileiro”, afirma Mairon G. Bastos Lima. Nela, até o momento, tudo acontece longe das vistas do Estado. A Operação Shoyo, no entanto, deixou claro que as agências regulatórias brasileiras estão atentas. Foto: Alicia Prager

O mesmo tipo de negócio versus a conservação?

O agronegócio é uma parte vital da economia brasileira, responsável por 23,5% do PIB do país em 2017 e 36% de suas exportações. A soja, em especial, representa quase 12% das exportações brasileiras, responsável por cerca de 25,7 bilhões de dólares em 2017 contra os 19,3 bilhões do ano anterior. Neste ano, estima-se que o Brasil irá ultrapassar os Estados Unidos ao se tornar o maior produtor mundial de soja. Em 2017, o Brasil exportou 68,1 milhões de toneladas – um volume que vem crescendo regularmente desde a última década.

Isso faz da soja um dos commodities mais valiosos do Brasil. A maior parte da produção de soja brasileira vai para a China, Espanha e Alemanha, conforme indica a TRASE.

Entretanto, essa explosão de produção no Brasil, especialmente no Cerrado, poderia ser conduzida de forma mais sustentável, afirma Mairon. Ele se refere aos compromissos de desmatamento zero que muitas empresas que negociam commodities assinaram no passado, a exemplo da bem-sucedida Moratória da Soja Amazônica.

As empresas “sempre dizem que sabem como se autorregularem, mas, aparentemente, elas quebram suas promessas”, afirma Mairon. Os pesquisadores esperam que as últimas multas do IBAMA façam com que as empresas sejam mais cuidadosas quanto ao desmatamento, especialmente porque a confiança do consumidor está em jogo. “Acredito que foi um alerta poderoso”, diz Mairon. “Uma reviravolta, talvez”.

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Os silos de soja são a porta de entrada da cidade responsável pelo rápido crescimento da agricultura, Luis Eduardo Magalhães, na Bahia. Na região da Matopiba, a infraestrutura se desenvolve para sustentar a agricultura, com a indústria de soja tida em alta conta e considerada sagrada e uma mina de ouro, que dificilmente recebe punição por infrações à legislação ambiental. Foto: Flávia Milhorance.
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